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A criativa forma como se contava até 9.999 nos dedos na Idade Média

Publicado em 24/08/2020 Editoria: Internacional sem comentários Comente! Imprimir


A Dama da Aritmética em uma xilogravura colorida à mão de 'Margarita Philosophica' ('A Pérola Filosófica'), de Gregor Reisch (1467? -1525) Imagem: Getty Images via BBC

A Dama da Aritmética em uma xilogravura colorida à mão de 'Margarita Philosophica' ('A Pérola Filosófica'), de Gregor Reisch (1467? -1525) Imagem: Getty Images via BBC

 

A criativa forma como se contava até 9.999 nos dedos na Idade Média

A Dama da Aritmética em uma xilogravura colorida à mão de "Margarita Philosophica" ("A Pérola Filosófica"), de Gregor Reisch (1467? -1525) - Getty Images via BBC

A Dama da Aritmética em uma xilogravura colorida à mão de &39;Margarita Philosophica&39; (&39;A Pérola Filosófica&39;), de Gregor Reisch (1467? -1525) Imagem: Getty Images via BBC

"Os dedos da donzela iam e vinham em uma nebulosa de movimentos incompreensíveis, como pequenos vermes em uma nascente de água borbulhante."

Foi assim que o escritor romano do século 5 Marciano Capela imaginava a dama da Aritmética, uma "mulher de extraordinária beleza, que possuía a majestade de uma antiguidade nobilíssima", em "De Nuptiis", obra em que personificou as sete artes liberais.

Essa dança que Aritmética executava com as mãos era a arte complexa e altamente valorizada de contar nos dedos.

Na prática, aquela mesma habilidade que você aprendeu quando era pequeno e que provavelmente ainda usa de vez em quando, embora talvez de forma mais discreta.

A grande diferença é que enquanto hoje muitos de nós não contam além de 10, no passado apenas com os dedos das mãos se contava até 9.999 (e podia chegar até 1 milhão, colocando as mãos em certas formas em diferentes partes do corpo)

"Este sistema foi usado desde os tempos romanos até a Idade Média (séculos 11 a 13) em toda a Europa", Seb Falk, autor do livro "The Light Ages" ( ou "A Idade da Luz", em tradução livre para o português) e especialista em história medieval.

O Venerável

A melhor descrição que temos dessa habilidade mágica aparece em um livro intitulado De temporum ratione ou "Na contagem do tempo", escrito no início do século 8 por um monge que vivia em um dos cantos mais remotos do mundo.

De um mosteiro em Jarrow, no nordeste da Inglaterra, ele criou obras que lançaram luz sobre a civilização ocidental, tornou-se um estudioso de renome internacional e, finalmente, um santo - São Beda, o Venerável.

De temporum ratione foi o primeiro tratado abrangente sobre um assunto que era de grande preocupação até a reforma gregoriana em 1582: a ciência do cálculo do tempo e a arte da construção do calendário.

"A base do calendário cristão era a Páscoa. Essa data tinha que ser identificada meses, ou anos, antes, e isso desencadeou grandes debates do Atlântico a Alexandria."

Se essa data importante fosse o domingo após a primeira lua cheia ou o equinócio, ela teria que ser fixada com antecedência - já que muitos outros festivais cristãos dependem dela -, para isso eles tiveram que combinar o ciclo solar - a Terra girando em torno do Sol, embora para eles, era o Sol que girava em torno da Terra - o ciclo lunar e os dias da semana.

"É um sistema complicado, mas, de modo geral, os astrônomos descobriram que em 19 anos o ciclo se repetiria e a lua nova ocorreria no mesmo dia, então eles tiveram que calcular onde estavam naquele ciclo de 19 anos.

"Beda escreveu De temporum ratione para explicar como fazê-lo. Representando o sistema solar em duas mãos e o lunar em apenas uma, o método tornou possível chegar à data correta da Páscoa em questão de segundos. Não foi à toa que seu manual enciclopédico foi impresso e copiado por centenas de anos."

E naquele livro que mostra como as mãos, esses dispositivos portáteis por excelência, funcionam como computadores, Beda também descreveu como contar até 9.999.

Com apenas duas mãos

"Assim como, quando escrevemos, temos uma coluna para as unidades, outra para as dezenas, as centenas e os milhares, eles dedicaram o dedo mínimo, anelar e médio da mão esquerda às unidades e o indicador e polegar às dezenas; na mão direita, o polegar e o indicador indicavam as centenas e os outros três dedos, os milhares.

"Diferentes combinações desses dedos em diferentes posições permitiram representar todos esses números."

Muito complicado?

Beda ainda dá dicas para aprender a contar: dizer os números em voz alta, enquanto ensina as mãos a se acostumar com gestos que às vezes são difíceis de replicar, até que você os memorize.

Uma vez destro, você também pode usar suas mãos para adicionar, subtrair, multiplicar, basicamente, como um ábaco.

E o Venerável também sugere usá-lo para brincar e se divertir.

"Era um código, uma linguagem gestual, que se usava nos mercados - como o que as corretoras usam - porque era uma forma eficiente de comunicar em meio ao barulho e à distância", explica Falk.

"Mas quem o usava mais eram os monges, não só para se comunicar nos mosteiros, onde o silêncio é precioso, mas também usavam as mãos para memorizar textos filosóficos e fórmulas matemáticas."

Em caso de emergência

A contagem com os dedos também serviu de código, em que os números foram substituídos por letras -a = 1; b = 2 ...-, algo útil mesmo em situações perigosas.

"Por exemplo, se você quiser alertar um amigo que está entre traidores para ser cauteloso, mostre-lhe com os dedos 3, 1, 20, 19, 5 e 1, 7, 5 ; nessa ordem, as letras representam caute age (agir com cautela). Pode ser redigido, se necessário, com um maior grau de sigilo", explica Beda em De temporum ratione.

Mas esse código manual também foi valioso para o estudo de algo muito precioso na vida monástica: a música.

"A música era estudada de uma forma muito científica; para os monges era uma ciência matemática. Eles pensavam constantemente na relação entre as diferentes harmonias, nas relações aritméticas entre as diferentes notas da escala musical.

"Para esse tipo de filósofos, tudo estava relacionado, tudo havia sido criado por Deus por algum motivo, e aquele da &39;harmonia das esferas&39; e da &39;música universal&39; não era uma metáfora".

Esta antiga teoria de origem pitagórica postulava que o Universo era governado de acordo com proporções numéricas harmoniosas e que o movimento dos corpos celestes seguia proporções musicais.

"Os planetas tocavam uma espécie de música criada pela velocidade com que giravam, que era como uma frequência: quanto mais alta a frequência, mais alta a nota.

"Para lembrar as diferentes notas musicais e configurações de harmonias, eles usaram as mãos."

Naquela época, vale lembrar que a memória era uma ferramenta indispensável.

"O material de escrita era muito caro, os livros escassos e muito valorizados."

E estes últimos ainda são preciosos, sobretudo aqueles como o venerável Beda que nos permite imaginar aquela dança manual científica e por vezes lúdica que durante séculos serviu da contagem à evocação da melodia cósmica.

› FONTE: 24 Horas No Ar (24horasnoar.com.br)


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